IMAGINOKUPA #1

Comida Popular

“Comida Popular” é como ficou conhecido o imóvel ocupado no beco 77 do bairro periférico Libertador. É uma pequena casa de dois pavimentos transformada em um restaurante com várias peculiaridades.
O imóvel foi abandonado nos anos 70, após o boom econômico da região, o que fez com que várias famílias migrassem para casas maiores ou mais próximas do Centro da cidade. Quase 35 anos depois, um grupo de jovens aventureiros acessaram o imóvel com o intuito de pintar grafittis nas paredes para servir de cenário para um videoclipe, mas se depararam com as paredes completamente tomadas por vegetação, impedindo a prática com as latas de spray. Naquele momento o clima era de frustração e aquelxs jovens se sentaram no segundo andar para traçar estratégias de como transformar o local em um bom cenário para a música de protesto que eles cantavam.
No decorrer das conversas, xs jovens estranharam o fato de haver tamanha vegetação em um local abandonado há anos, e começaram a investigar as plantas que cresciam ali. Algumas foram reconhecidas rapidamente, como a Ora-pro-nobis que subia desgovernada pelas pilastras externas. Outras, como o Peixinho, foram reconhecidas com certa dificuldade por alguns deles que já haviam provado a iguaria.
Acontece que a notícia se espalhou em diversos grupos, e foi montada uma força-tarefa para catalogar as plantas existentes naquele local. No grupo que se formou haviam biólogxs, cozinheirxs, nutricionistas, artistas de diversas áreas, eletricistas e pessoas desocupadas, que não se definiam por uma área de trabalho específica. Após várias reuniões no local, e com o catálogo de plantas quase completo, foi descoberto um sistema de captação de água que mantinha úmida todas as plantas, além de uma certa “fauna” que manteve a reprodução e a adubação dos pequenos vasos por todo esse tempo. As grandes portas de vidro auxiliavam a entrada da luz. Era um verdadeiro ecossistema auto-gerido que havia sido criado pela própria natureza no decorrer dos anos.
O grupo de pessoas, inspirado pela descoberta, decidiu por transformar o local em um restaurante público. A ideia era servir almoço a preços irrisórios ou até de forma gratuita. Formou-se Comitês onde o trabalho do dia era dividido, e havia rotatividade de pessoas entre os Comitês para que todxs pudessem aprender e/ou ensinar novas habilidades, seja na cozinha, no plantio ou na manutenção do local.
79% das refeições servidas na “Comida Popular” têm sua origem na própria ocupação, sendo o restante oriundo de parcerias com outros locais que fornecem arroz, fubá e azeite, por exemplo. O Peixinho frito no fubá é um dos pratos favoritos das pessoas que frequentam o local. O prato vem com 3 folhas grandes, arroz, grão de bico, tomate, alface e ervilha.
O local é mantido apenas com os ganhos da hora do almoço, e isso ajuda a financiar as pesquisas sobre a flora local, também a manutenção e a compra de alguns suprimentos de limpeza e higiene. A ocupação tem sido um ponto de referência na periferia da cidade, e foi acolhido pela comunidade local como um dos espaços mais importante da região. Foi, inclusive, o apoio comunitário que impediu o despejo do grupo gestor e da atividade de restaurante pelo menos em 5 ocasiões, onde os antigos donos do imóvel exigiam, entre outras coisas, que um valor de aluguel fosse pago.
“Comida Popular” segue firme com as atividades, atraindo trabalhadorxs, estudantes e curiosos de diversas regiões que fitam compreender como funciona a ocupação. Atualmente, a Força-Tarefa conta com aproximadamente 17 pessoas que se revezam voluntariamente entre os Comitês de Limpeza e Higiene; de Plantio e Colheita; de Elétrica e de Água; de Preparo e Manuseio e o de Captação e Propaganda. Este último Comitê produz cartilhas sobre plantio, preparo e alimentação com Plantas Alimentícias Não-Convencionais (PANC’s), Nutrição Vegana, formas de gestão coletiva e informes sobre a ampliação das redes de influência formadas juntamente à outros Coletivos e Ocupações.
O beco 77 do bairro Libertador nunca mais foi o mesmo depois da descoberta dos jovens.

Lapsos de Tempo #8

Diário

Hoje acordei nesse lugar estranho. Parece uma caixa com uma porta. Tem outros como eu em outras caixas parecidas. Não vejo ninguém com a cara boa dentro destas caixas. Tem algo ligado na minha veia, parece que estão me injetando um líquido transparente. Sinto uma dor abdominal tremenda, parece que falta algo. Não tenho muitas lembranças de como cheguei aqui, ou o que aconteceu nesse tempo. Tem algo enfiado no meu pescoço que me impede ver o que fizeram comigo, mas sinto uma faixa apertando o abdômen. Acho que estou sem forças…
***
Vejo o casal que cuida de mim na sala de espera desse lugar horrível. Por mais que eu queira sair correndo em direção à eles, sinto muitas dores, acho que estou meio zonzo. Sinto uma fraqueza no corpo. Eles me pegam no colo e me colocam no carro. No trajeto, olho a paisagem, ainda muito desconfiado do que pode ter acontecido comigo.
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Já fazem alguns dias que sigo a mesma rotina. Me obrigam a tomar vários remédios com hora marcada. Eles são ruins, amargos, e eu sempre recuso esse tipo de tratamento. Essas pessoas que cuidam de mim me colocam deitado de barriga para cima no sofá. Eles limpam o corte fechado com pontos que tem na minha barriga. É um corte grande, e eu sinto um nervoso ao sentir esse produto de limpeza que passam. Nem vou dizer da coceira que dá quando borrifam esse trem marrom no ferimento. Eu sigo sem forças para várias tarefas, mas agora o colchão está direto no chão, eu não preciso me esforçar para dormir no quentinho.
***
Hoje tiraram meus pontos. Foi um baita dum alívio. Não preciso mais usar aquele aparato no pescoço que me impede de fazer tudo. Talvez eu esteja melhor.
***
Toda semana estou frequentando esse lugar, que parece o das caixas, mas que é diferente. As pessoas se parecem, mas a disposição de tudo é diferente. Entro numa sala, sempre a mesma sala quente, e fico sentado nessa mesa de alumínio. Minha pata é raspada com máquina, colocam uma agulha enfiada na minha veia ligada à esse líquido transparente. Injetam algo nessa mangueirinha e sinto algo queimando se misturando ao meu sangue. É bem desagradável. Toda semana é isso. Ao final, recebo umas agulhadas com medicamentos debaixo da pele nas costas, costuma ser bem dolorido. Eu ainda não sei o que aconteceu comigo.
***
Já tem um tempo que não preciso mais ser medicado, já não me sinto mais fraco, minha vida voltou ao normal. Consigo correr, pular, latir e brincar sem sentir dores. Eu engordei alguns quilos, e nem tenho mais a aparência raquítica. Todo dia, antes de dormir, estão me dando um negócio com gosto de peixe, dizem que eu precisarei tomar pra sempre. É gostoso, faço questão de lembrá-los disso antes de deitar.
***
Ultimamente tenho tido dificuldades para urinar. Eu faço bastante força, e costuma sair sangue. Eu não sei o que fazer para que as pessoas percebam essa dificuldade. Mas acho que da última vez eu urinei um pouco de sangue. Acho que eles viram o meu esforço para que saísse isso. Talvez eles me levem ao médico, sei lá.
***
Que dor de cabeça horrível, odeio acordar assim. Nem acredito que estou dentro da caixa com portas de novo. Os rostos nas caixas são outros, não reconheço ninguém. Estou ligado nesse aparelho que enfia líquido na minha veia de novo. Esse troço desengonçado no meu pescoço voltou. Ainda sinto muitas dores e não consigo me lembrar de como cheguei aqui. Estava fazendo alguns exames, enfiaram umas mangueiras em mim, de repente acordo aqui. Não aguento mais isso.
***
Cheguei em casa bem desanimado. Dói bastante para urinar, parece que tem pontos novamente em mim. As pessoas que cuidam de mim limpam a saída do xixi constantemente, talvez os pontos estejam ali. Retomaram com a rotina destes remédios de sabor horrível, são muitos. Me faltam forças para reagir…
***
É estranho mijar por esse orifício que abriram em mim. Eu não sei porque fizeram isso, mas imagino que deva ser pela dor que eu sentia quando tentava fazer xixi. Agora não dói, mas ainda é estranho, talvez seja difícil de acostumar.
***
Fazem alguns meses que me sinto super bem, ativo como nunca. Não me levam na clínica há tempos, não sinto dores. Talvez sejam novos tempos, o sol até brilha mais forte que o normal.
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Ultimamente tenho me sentido desanimado, o sol está queimando mais que o normal, tenho buscado sombras. As pessoas que cuidam de mim jogam uma bolinha ou um ossinho de corda, mas não sei se tenho muitas energias para interagir agora. Eu olho para esses objetos e fico pensando se vale a pena o esforço. Não vale.
***
Hoje aconteceu algo terrível. Fui tentar fazer cocô e senti algo que não devia escapar pelo ânus. Não era cocô, doía bastante e eu fiquei sem saber o que fazer. Corri para uma das pessoas que cuida de mim e fiz um estardalhaço. Ele me pegou no colo e fomos para a clínica. Lá, me deram uma injeção que eliminou a dor, e enfiaram de volta pra dentro o que não devia ter saído. Fizeram alguns pontos para evitar que saísse de novo. Foi horrível.
***
Os últimos dias foram complicados. O que não deveria sair pelo ânus saiu mais 3 vezes. Em duas delas, foi feito o mesmo procedimento de injeção e retorno pra dentro com o conteúdo. Na última vez, me sedaram. Acordei na caixa com porta, bem zonzo, tonto, desorientado. Sentia a dor abdominal, só que desta vez era diferente. Eu não aguento mais esse lugar.
***
As pessoas que cuidam de mim me buscaram, desta vez eu nem fiz festa, não tinha energias para isso, além de estar de saco cheio desse lugar. Em casa voltou a rotina dos remédios e da limpeza nos pontos. Eu já nem me importava mais com nada. Me sentia muito fraco para qualquer coisa.
***
Fazer cocô é uma atividade muito custosa, me traz muitas dores, e não sai nada. Toda vez que faço força, algo que não deveria sair pelo ânus escapa. Eu não aguento mais isso.
***
Me abriram de novo, não quero mais acordar nesse lugar… O que está acontecendo? Desta vez me deixaram aqui por uns 10 dias, morando nesta caixa com porta. Eu observava os rostos, muito desanimados, desolados, tristes… Não desejo isso para ninguém.
***
Estou em casa, as pessoas que cuidam de mim fazem carinho na minha cabeça. Não sei porque, mas minhas patas traseiras estão dormentes, não consigo levantar. Apenas tenho movimento nas dianteiras e no pescoço. Fico encarando as pessoas para ver se elas estão percebendo isso.
***
Minhas patas dianteiras param de funcionar, estão dormentes, não as sinto. Apenas meu pescoço se mexe. Uma das pessoas me carrega para o quarto e me coloca em um pano macio. Ela fica fazendo cafuné na minha cabeça a noite toda.
***
É de manhã, eu apenas consigo mexer os olhos. É uma sensação horrível, parece que não há nada no corpo que não sejam os olhos. Eu solto um grito de dor involuntário, e começa a faltar ar. Um das pessoas se senta ao meu lado chorando, fazendo carinho em mim e dizendo algo que não entendo. Apenas enxergo parte de toda a situação. Eu fico cada vez mais ofegante, respirando muito fundo, escutando um choro ao lado.
***
O último ar que circulou dentro de mim levou consigo toda minha essência. Já não pertenço mais à este lugar.
Obrigado por tudo,
e nos veremos em breve!

Lapsos de Tempo #7

Em casa

Escuto um barulho que me acorda. Abro os olhos, ainda estou deitado nesse objeto macio. Gosto de dormir nele porque meu corpo se encaixa muito bem e minha cabeça fica apoiada nessa parte lateral. Daqui eu consigo ver esses dois gigantes que roncam muito alto. Um deles se levantou para tomar líquido transparente e acabou trombando em algum objeto de madeira no caminho. Foi esse barulho que deve ter me acordado. Não tá na hora de levantar ainda, aquele aparelho eletrônico ainda não tocou a música horrível. Eu adquiri esse péssimo hábito de não conseguir mais dormir depois que a música horrível toca. Para me vingar, eu subo no quadrado macio que os gigantes dormem e faço questão de raspar minha língua na cara deles. Se eu não posso dormir, eles também não poderão. Raspar a língua na cara também vai fazer com que eles desliguem a música horrível, essa aberração tonal que toca todo dia de manhã…
Sigo deitado, apenas observando a horário que a música horrível vai tocar. A partir daí eu posso seguir com minha rotina. Os gigantes são muito frágeis no bueiro gigante, e eu faço questão de acompanhá-los quando eles estão lá. Eles vão todos os dias no mesmo horário. Não sei como aguentam essa rotina. Não sei como eu aguento essa rotina. Eles também possuem um aparato fino para usar após se levantarem do bueiro gigante, eu ainda não sei para que serve. Gosto apenas de desenrolar ele todo pra tentar entender os porquês da existência disso. Sigo sem saber.
Na cozinha o líquido transparente é colocado num objeto de metal, depois começa a pegar fogo por fora enquanto borbulha por dentro. Enquanto isso vou para a sala aproveitar o sol da manhã. Me disseram que é a melhor vitamina D que existe. Gosto de sentir os raios solares adentrando meus pelos enquanto sinto o cheiro agradável do líquido transparente se tornando líquido preto. Nunca me deram isso para beber, só me dão líquido transparente. Talvez seja uma coisa de gigantes.
Começou a ficar quente demais, me levanto e vou para a sombra. Faço isso enquanto observo os gigantes bebendo líquido preto e comendo algo que eles não me deixam comer. Eles proferem sons em concordância, até parece que se entendem. Um emite um som enquanto o outro não emite som. Às vezes eles emitem esses sons se direcionando a mim, como se eu soubesse do que eles estão proferindo sons.
Ambos saem desse local, fico aqui pensando no que devo fazer em todo esse tempo que ficarei sozinho. Tem vários objetos macios onde posso deitar, mas não sei se quero dormir agora. Tem um buraco no local ao lado, parece que tem algo acontecendo ali. Acho que será um bom passatempo observar dentro do buraco. Fico de saco cheio, deito um pouco em cima de um objeto de madeira, só que ao lado da vegetação. Vou na cozinha ver o que está de fácil acesso e que mate minha fome. Não há nada. Até tento saltar na borda do objeto de madeira, mas não há migalhas desta vez.
Olho pra sala e algo brilha, chama minha atenção. Vou para lá correndo e me deparo com um objeto de plástico no chão. Ele possui algum líquido dentro, mas tem uma coisa de plástico que parece impedir que o líquido saia. Me coloco a missão de retirar esse plástico que impede o líquido de sair. Isso ocupa boa parte do meu tempo sozinho. Meus dentes são fortes, mas acho que tiveram dificuldades com esse objeto. Quando eu consigo remover o plástico, o líquido escorre no chão. Eu não sei o que fazer, como que se limpa uma sujeira? Devo raspar a língua? Os gigantes devem voltar e eu não sei como esconder isso. Deito em cima como se a sujeira fosse um objeto macio. Mas logo me levanto por me sentir incomodado com a sensação do líquido na pele. Tento raspar a língua, mas o gosto não é legal e eu acabo desistindo.
A tensão me deixa imóvel e eu não sei o que fazer. Olho para a sujeira que o líquido fez e a fico encarando, maquinando possibilidades. Adormeço sem ver.
Escuto um barulho na rua e desperto rapidamente. É o barulho do objeto de metal que protege o buraco que entra o equipamento mecânico. Os gigantes estão chegando. Me lembro da sujeira e começo a correr e latir, sem saber o que fazer. Não encontro a sujeira, talvez alguém tenha limpado.
Tô aliviado. Corro para o buraco por onde os gigantes entram no local. Estou feliz, eles não perceberão que fiz sujeira e eu não fico mais sozinho.

La Idea, 2023 – Olympus Pen-EE, Double-X PB 200

Na rua

Escuto alguém me chamar lá fora. Vou correndo para entender melhor o que está acontecendo. Me aproximo da grade e vejo a Pequetita passando pelo lado de lá da rua. Ela anda meio pomposa, empinando o bumbum pro pequeno rabo ficar mais aparente. Mas esse hábito faz com que ela caminhe dando alguns pequenos saltos. Seus pelos são de cor clara, contrasta com a calçada escura. Pequetita me avista e, sem cumprimentar, grita em minha direção que a árvore da rua foi contaminada. No meu tempo de reação eu só consigo perguntar de volta quem foi o autor da contaminação. Ela grita que não sabe, mas foi alguém novo. O perfume que estava na árvore era diferente de qualquer outro lugar da região. Eu agradeço e aproveito o dia claro para me deter no sol por alguns minutos. Logo após a Pequetita, o Caquito passou pela rua. Ele me viu, mas fingiu que eu não estava ali. Prefiro contar sobre a contaminação para quem quer saber, Caquito me esnobou, não gostei. Sigo olhando para a rua, Suzi passa e eu aviso que a árvore está contaminada. Ela me responde, diz que a Pequetita já avisou a ela, mas que ela precisava ir na árvore conferir a nova fragrância. Eu digo que só irei de noite, mas que gostaria de saber as atualizações no decorrer da tarde. Suzi segue caminho e se detém na árvore da rua. Eu fico observando. Ela sente o cheiro e olha para mim, confirmando que é alguém diferente. Isso me deixa mais curioso. Tinoco vem descendo a rua. Ele é mais parrudo, curte subir numas árvores. Já fiquei sabendo que ele até já subiu muro. Da rua, eu acho que ele é o mais ágil. Mas eu o vejo pouco, ele vive um pouco mais distante, mas sempre cumprimenta quando passa por aqui. Uma vez ele disse que me traria um pedaço de osso e deixaria aqui na minha porta, eu agradeci, mas recusei a oferta. Ossos não me fazem bem. Tinoco parou na árvore, trocou algumas palavras incompreensíveis com Suzi, e me olhou. Será que a Suzi falou de mim? Tinoco desceu mais e parou aqui em frente, perguntou o que eu já sabia do caso da árvore. Eu disse que havia uma nova fragrância que contaminou a árvore e que era de alguém desconhecido. Ele me confirmou a informação, disse que eu deveria ser mais enxerido pra coletar informações. Eu disse que tentaria, mas nem sempre dá tempo. Tinoco fingiu que estava caçando lugar para defecar enquanto conversávamos. Depois de um tempo despistando, ele seguiu viagem. Ver ele despistando me deu vontade de mijar. Aqui neste espaço tem plantas, e eu posso liberar o xixi aqui sem perder as atualizações sobre a contaminação da árvore da rua. Fiquei algum tempo olhando para a árvore da rua, o que poderia ter contaminado ela? Preto e Branco estão subindo a rua. Eu acho que eles são irmãos, mas não tenho certeza. Eles são parecidos, exceto pela cor curiosa de seus pelos, um é claro e o outro é escuro. Eu nunca sei quem é quem. Quando os vejo subindo eu só os chamo de Zé. É muito mais fácil e ambos atendem. Eu aviso que a árvore da rua foi contaminada por alguém desconhecido. Eles apenas acenam, não dizem nada de volta. Acho que eles têm medo de gritar muito alto e serem punidos por isso. Pelo menos fiz minha parte em avisar. Eu apoio a cabeça na grade e me concentro na árvore da rua. Quero sabe em primeira mão a origem da fragrância que contaminou a árvore da rua. Mas depois de tanto tempo, não avisto nada de anormal. Pingolino mora em frente à árvore, em breve tá na hora dele sair pra dar uma volta. Talvez ele tenha mais informações sobre o caso. Roger passa antes, avisando que talvez não seja bom verificar o odor, pois se contaminou a árvore, sabe-se lá o que pode fazer com a gente. Margarete diz que é uma fragrância meio doce, estranha, que deixa a gente enjoado. E se todos adoecermos por causa dessa contaminação? Avisto o portão abrindo e Pingolino está dando as caras, finalmente. Ele sai, analisa a árvore, e começa a buscar possíveis ouvintes pro seu caso a solucionar. Ele me avista e vem na minha direção. Ele me diz que viu algo preto sair de um negócio vermelho, cair na árvore da rua e começar a borbulhar. Foi isso que contaminou a árvore. Não foi um desconhecido, porque não foi um de nós. Eu tento ficar mais tranquilo em saber que não tem desconhecidos contaminando a árvore da rua, mas me preocupa esse líquido preto borbulhante e adocicado que contamina tudo…

La Idea, 2023 – Canon BF-800, Fomapan BW 100

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A passagem de Chiquito

Dia 25 de Julho de 2012 nasce Francisco. Pequeno, leonino, travesso e amável. Rapidamente recebeu vários apelidos que ele correspondia com bastante interesse. Do nome Francisco vieram Chico, Chiquito, Tico, Picles, Picolino, Picochito, Pico, Francis, Francis Bacon, Chiquito Bacana, entre outros… Todos sempre funcionaram muito bem para que ele soubesse que estávamos nos comunicando com ele. Francisco fez parte de uma ninhada de vários irmãos, cujos pais prováveis são Golden e Poodle. Apenas ele não se parecia com Poodle e acabou esquecido no lar adotivo vendo seus irmãos encontrarem suas famílias rapidamente. Francisco não se parecia com algo que chamasse atenção, pelos curtos de cor bege claro, barriga escura cheia de vermes. Uma coisinha apertável e carente, que ficava agitado na presença de outros seres. Sim, ele gostava muito de ter companhias. Quando cresceu ficou parecido com um Golden Retriever, porém com o tamanho de um Poodle. Fofo como Golden, agitado como Poodle (só que sem ser chato).
Foi em 2014 que ele veio viver com a gente no apartamento de área privativa em que morávamos. Chiquito não gostava de subir na cama para dormir, mas sempre tirou seus cochilos ao lado da cama, no chão. Diferentemente do seu comportamento com sofás, poltronas e redes, já que ele sempre subia nestes móveis para apoiar a pata no colo de alguém pedindo carinho. Ele também possuía um hábito curioso de cheirar olhos, era assim que ele conhecia realmente a fundo a pessoa com quem ele estava se relacionando. Ironicamente, ele não gostava que cheirássemos seus olhos.
Chico gostava de fazer suas necessidades sempre em áreas externas, sendo bem metódico com seus lugares favoritos. Exceto quando, por ironia do destino, ele ficava muito tempo sozinho. Nessas ocasiões ele gostava de urinar na quina da parede da sala durante a madrugada, como forma de protesto. Na solidão ele também chegou a destruir dois pares de sapatos.
Nesta época, para que a urina de madrugada parasse, Chico saía às ruas sem coleiras sempre antes de dormir. Ele corria pelas ruas tranquilas do bairro, explorando o espaço citadino de um bairro puramente residencial, sem muita movimentação no turno noturno. Algumas vezes ele, esperto que era ao explorar as ruas, entrava em alguma casa desavisada com portão aberto para conferir se a ração oferecida naquela residência era boa o suficiente para seus amigos do bairro.
Esse hábito da caminhada antes do sono é algo que o acompanhou até 2021, quando tivemos que alterar seus hábitos. Antes disso, Chico gostava muito de ir em praças interagir com outros animais, e sempre foi muito carinhoso com visitas na casa dele, exceto se alguém apresentava medo ou receio em relação à ele, então ele latia para repelir a pessoa de vez. Ele se sentia o maioral com esse tipo de comportamento.
Francis não gostava muito de câmeras, e sempre virava a cara para não aparecer nas lentes. Porém, suas fotografias, apesar disso, sempre ficaram muito boas. Ele saía com expressões faciais muito marcantes, penetradas, constrangidas com a situação.
Chiquito adorava a rua, a observava com quem observa estrelas no céu com uma luneta profissional. Sabia de tudo que acontecia, e fofocava com outros cães que passavam pelo local. Porém ele não era muito fã de gatos e nem de ratos. Foi ele que descobriu uma infestação de ratos que abriu um buraco na parede embaixo do armário da cozinha e ficou latindo para que soubéssemos de onde estavam vindo. Ele também nos avisou quando dois gatos entraram em casa e ficaram presos na área de serviço ou na casinha do gás, pedindo que avisássemos seus donos sobre o que ocorrera.
Francisco gostava muito de carinho e de companhia. Gostava que fizéssemos cafuné em sua cabeça, em seu pescoço, em seu peito, na sua barriga e no seu cóccix, onde ele tinha efeitos secundários que o faziam mexer as pernas involuntariamente. Às vezes ele mesmo empurrava nossas mãos para que soubéssemos onde ele queria carinho. Quando estávamos nos alongando ele sempre aparecia embaixo de nossas mãos aproveitando o momento para receber mais carinho. Ele também achava que qualquer pedaço de pano no chão era um convite para que ele deitasse em cima, fixando espaço, inclusive, sobre pés de chinelos e panos de chão. Chico também gostava de deitar em lugares estranhos nos móveis ou de enfiar a cabeça em algum lugar aleatório como se fosse um tamanduá. Ele adorava acompanhar o cochilo de quem quer que fosse, se deitando ao lado, nas pernas ou nos braços da pessoa para aproveitar aquele momento de descanso.
Chico foi um cãozinho muito ativo, feliz, brincalhão e afetuoso. Brincava de bola, mas ficava de saco cheio muito rápido. Gostava mesmo é de brincar com um brinquedo de osso feito de pano, jogando para cima e para baixo, buscando onde quer que fosse. Da mesma forma, adorava brincar com potes e garrafas de plástico vazias, mordendo e fazendo barulho por onde quer que fosse.
Em fevereiro de 2021, caminhando pela rua de madrugada, Chico achou um osso e mastigou, dando uma engasgada que nos deixou preocupados. No dia seguinte o levamos à veterinária e ela nos disse que aparentemente ele estava bem, e indicou um ultrassom abdominal para conferir se o osso ainda constava no sistema digestivo dele. Não foram encontrados vestígios de osso, mas foi descoberto um tumor em seu baço já em estado crítico. Chico fez a cirurgia de remoção do baço, teve hemorragia e precisou de transfusão sanguínea. Se recuperou bem, fez quimioterapia e com a imunidade baixa acabou tendo que lidar com outras questões: problemas renais, bactéria no tártaro do dente, dermatites, cálculos na uretra, infecções nos ouvidos… Essas questões o impediam de sair à rua para evitar pegar outras doenças.
Chiquito viveu o melhor que pôde nesse tempo, mesmo com tantas debilidades. Foi em sítios, em fazendas, viajou, interagiu com muitas pessoas, foi em parques, praças, diferentes casas de familiares e de amigos. Tomou bastante sol enquanto vigiava a rua aguardando seus amigos passarem para que as fofocas pudessem ser espalhadas.
Pouco antes do carnaval de 2024, Chiquito teve de lidar com uma prolapsia retal, que foi bem insistente em sua ocorrência, fazendo com que ele tivesse que passar por seis procedimentos cirúrgicos e duas cirurgias mais complexas até descobrir um novo tumor que se desenvolveu rapidamente e desordenadamente no seu intestino, bem próximo do ânus. Foram várias internações que ajudavam nos sintomas, mas que não eram eficazes contra a causa do problema. Nenhum tratamento mais seria possível.
Foi na manhã de 30 de Março de 2024 que Chiquito, já sem conseguir movimentar as patas traseiras e nem as dianteiras, deu seus últimos suspiros, recebendo muito carinho e amor, deitado no chão ao lado da cama, lugar que ele tanto gostava de deitar. Ele sabia que estava de partida, e só aguardava a autorização de embarque de seus tutores que tanto o amam, e que fizeram de tudo para que ele tivesse a melhor vida possível.
Chiquito deixou muitas memórias agradáveis, um verdadeiro Cãopanheiro, momentos inesquecíveis, uma massa de pessoas que o amavam, indo viver no paraíso dos animais, onde se encontra tantos outros seres que fizeram da vida algo que valesse a pena de ser vivida. Lugar onde apenas bons humanos conseguem ir, pois estar rodeado de bichanos incríveis é o melhor pós-morte que alguém poderá ter.
Vá em paz Chico, você fará muita falta em nossas vidas.


Ruim demais para ser mentira #4

Ondas

Quando eu era pequeno eu tinha muita curiosidade em saber como eram feitas as ondas do mar. Me dava muita curiosidade aquela água que se enrolava e subia, quebrava, chegava na areia e voltava. As ondas sempre me impressionaram.
Íamos muito para a Ilha de Guriri, norte do Espírito Santo, durante minha infância nos anos 90. Eu conhecia cada pedaço daquela ilha, caminhava e pedalava muito por lá, e foi exatamente nas praias desse lugar que meu pai me ensinou a pegar jacarezinho acompanhando as ondas. Ele também me ensinou a não tomar caldo toda vez que a onda crescia na minha frente. A ideia era bastante simples: quando a onda subia, você pulava de ponta no meio dela, cortando a água e saindo do outro lado.
Eu gostava muito de ficar no mar. Eu me sentia super corajoso e costumava nadar sozinho quando não conseguia companhia para entrar na água. Inclusive, uma cena comum da minha infância consistia em eu sair da água sem entender o lugar onde eu estava, e eu sempre parava algum adulto pra me dar a mão e me ajudar a achar meus pais na faixa de areia. Sim, a maré sempre me levava, e aparentemente ninguém se dava conta disso (ou não se importavam).
Minha irmã, alguns meses mais velha que eu, costumava me explicar o funcionamento de várias coisas. Para mim ela era como uma “Sábia da Montanha”, sempre aparecia com as respostas que eu precisava. Especificamente nessa época em Guriri, ao ser perguntada sobre a formação das ondas do mar, ela me disse que no mar haviam mulheres deitadas que ficavam se enrolando na água, e assim surgiam as ondas.
Esse foi um imaginário que ficou na minha mente por muito tempo. Sempre que a onda subia, eu pulava de ponta e abria os olhos dentro da água salgada pra tentar encontrar essas mulheres. Eu fazia isso com uma certa frequência, e na minha memória atual consta apenas uma visão turva e escura da vida aquática. Além da lembrança de ter sempre os olhos muito irritados ao voltar da praia.
Nunca encontrei essas mulheres, mas eu seguia imaginando qual seria o tamanho delas naquelas ondas gigantes que os surfistas ousavam surfar no Hawaii. Eu também ficava imaginando quantas mulheres estavam dentro da água para esse tanto de onda ser formada ao mesmo tempo em vários lugares distintos. Como elas respiravam? Na minha cabeça, as mulheres dentro da água seriam como aquelas atletas de nado sincronizado, que se movem coordenadamente dentro da água. Talvez a modalidade olímpica tenha nascido a partir dessa ideia. Mas acontece que meus esforços em encontrar essas mulheres sempre foram em vão. Nunca as encontrei.
***
Recentemente eu questionei minha irmã sobre essa história, se ela se lembrava disso. Para minha surpresa, ela se lembrava sim. De acordo com ela, essa ideia veio de alguma abertura do Fantástico ou da novela Mulheres de Areia, que mostrava umas mulheres se tonando água ou areia, algo do tipo. Ela via essas coisas na televisão e sempre me contava suas descobertas. Eu cresci achando muitas coisas de forma equivocada e fantasiosa. Talvez eu deva ser mais grato à ela por me fazer viver uma fantasia criativa/racional. Toda vez que escrevo uma memória, me traz uma felicidade por ter uma imaginação fértil. Hoje sabemos que Yemanjá e Poseidon se escondiam das minhas buscas, bem como as sereias encantadoras de marinheiros. Essas pessoas achavam que talvez eu fosse me perder no mar, de uma forma que eu não pudesse pedir ajuda pra achar minha família novamente. E, se assim fosse, eu poderia saber como as ondas são formadas.

Definições…

Belo Horizonte, 23 de Fevereiro de 2024
Manhã muito chuvosa, fria, cinza, fechada…

Me detive um tempo tentando compreender o que sinto neste momento. Fiquei pensando muito se o termo apropriado seria algo como “angústia”. Fiquei pensando se escrever sobre isso me tiraria um pouco desta dor. Busquei em diferentes dicionários esses significados, mas a racionalidade e a objetividade talvez não caibam neste momento.
O Priberam me diz que o termo significa estreiteza; grande aflição acompanhada de opressão e de tristeza. O Michaelis traz o termo como perda de espaço ou de tempo; carência, falta. O Dicio me diz que o termo diz respeito a uma ansiedade física acompanhada de dor; agonia, ansiedade, apreensão, aperto. A Infopédia traz como aflição, ansiedade, agonia. Cambridge traz como aflição; ansiedade. Aulete coloca como ansiedade intensa; aflição; agonia.
Destas pesquisas, apenas três me retornam significados outros, de ordem mais profunda. O termo aparece como experiência metafísica através do qual o homem toma consciência do ser; ou sentimento de ameaça que não se consegue determinar nem medir, sendo próprio da condição humana; também como a consciência da responsabilidade do homem que decorre de sua infinita liberdade; por último uma inquietude metafísica e moral, como consciência de um destino pessoal sob o signo da liberdade ou da ameaça do nada.
Não, nada disso me ajuda.
Fico pensando no quanto vivenciar essas situações limítrofes entre a vida e a morte pode ou não ser interessante, no quanto refletimos sobre isso tudo, e em como nossa ansiedade nos impede de sair de um lugar, qualquer lugar. Eu fico imóvel com um nó na garganta. Apesar de tudo que tenho lido e refletido sobre a morte, acho que eu ainda não sei lidar com situações que se aproximam do risco da passagem para outro plano, se é que isso existe.
Talvez eu tenha que me acostumar com o tamanho do NADA que encontramos quando precisamos de respostas, ou mesmo de caminhos.
O tempo nublado não me ajuda a ver o horizonte.
O vento frio não aquece meu coração.
Eu não sei definir o que significa angústia, e nem se é isso mesmo que sinto agora.



“Pensar incomoda como andar na chuva, quando o vento cresce parece que chove mais…” Fernando Pessoa.

Lapsos de Tempo #6

Pedrinhas – Lugar Mágico

Em toda grande metrópole há um sítio grandemente benquisto por seus habitantes locais. Imagina um lugar que funciona como um ponto de encontro para fortalecer o lado social; um lugar cujos turistas e viajantes fotografam sem piedade e de maneira predatória buscando o ângulo perfeito; um lugar que, de tão nobre, mostrou ao mundo toda sua magia e encanto. Hoje me dedicarei a apresentar Pedrinhas, lugar mágico no pequeno grande povoado de Bonito Cenário Profundo.
Bonito Cenário Profundo emergiu como um povoado a partir da ocupação dos grandes vales que se encontram ao centro de uma placa tectônica estável. Geologicamente monótono, o povoado ganhou fama na década de 30 por apostar alto em uma arquitetura fantasiosa, que remetia à um certo futurismo Jetsoniano, uma visão bem à frente de seu tempo. O povoado desenvolveu-se com vários campos tecnológicos de extração, exploração, estudos e indústrias do mineral abundante em seu solo, o Gnaisse, que viria a ser o símbolo de que o porvir já havia chegado ao presente, e que o presente, agora, já era coisa do passado.
O circuito de produção e desenvolvimento era tão complexo para a época, que foram necessários 90 anos para que várias ideias de urbanismo fossem colocadas em prática, mesmo depois da compreensão falida em relação ao modelo de cidade futurista que foi pensada naqueles tempos. O Gnaisse, rocha de extrema dureza, era retirado do solo para servir de estrutura das torres que eram utilizadas de escritórios e residências. O espaço deixado pelas rochas no solo, era ocupado por água de rios, fazendo com que os vales se enchessem rapidamente e inundassem as cavernas rochosas por baixo da cidade.
Com o passar do tempo e a indisponibilidade de recursos para extração e estudos, além do baixo investimentos em tecnologias de produção, as construções em Gnaisse tiveram que ser abandonadas, transformando o povoado de Bonito Cenário Profundo em um povo fantasma, um grande vale úmido com imensas torres de pedra.
A virada de jogo apareceu quando pessoas de várias partes do mundo, aterrissavam na região para conhecer a cidade perdida de Gnaisse. Várias lendas, mitos, boatos e rumores correram os quatro cantos do globo terrestre, e a cidade compreendeu um verdadeiro boom populacional, com muitas pessoas interessadas em viver na região.
Acontece que com o passar dos anos, parte da história se perdeu. Quem vivenciou o auge político-econômico da região já não se encontra mais neste plano. Porém, um resquício da história pode ser vista a olhos nus na região que ficou conhecida como “Pedrinhas”. Pedrinhas é um complexo de três grandes blocos de Gnaisse, possivelmente utilizados na construção civil, e que se tornaram parte definitiva da história que é contada hoje. Os blocos já foram solo, já foram torres, e agora são bancos.
Os moradores que costumam se encontrar no sítio arqueológico são autodenominados Gnaissianos, e eles podem sentir forças mágicas que atuam na região dos blocos. Há quem diga que existe um momento do dia em que se pode escutar vozes vindas dos blocos, mas é apenas em um momento específico em que o sol ilumina por igual as três grandes rochas.
O Governo local conseguiu um alvará no Ministério Internacional de Exploração do Turismo em Lugares Mágicos para utilizar o rótulo de “Lugar Mágico”, comprovando que muito do que se falava sobre a região é, de fato, realidade. Pedrinhas entrou na lista dos lugares mais visitados do mundo, perdendo apenas para Paris na França, mas conta com o maior número de hashtags publicadas nas redes sociais, liderando as buscas por turismo fotográfico.
Pedrinhas, Lugar Mágico, badalado e agitado no coração cêntrico da região monótona de Bonito Cenário Profundo.

La Idea, 2023 – Olympus Pen-EE, Shangai GP3 100 BW

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Lapsos de Tempo #5

Trajetos com pensamentos fluidos

Para dar movimento impulsiono com meu pé direito ao mesmo tempo em que salto passando a perna por cima do banco. A rotação do pedivela me permite fazer todo o movimento sem parar a aceleração. Com o pé esquerdo posicionado ajusto meus ísquios para ter maior apoio. Olho adiante e traço uma rota imaginária, meu pensamento como se fosse um drone transitando nas ruas e deixando um rastro de sua passagem. Tenho meu caminho planejado, só preciso transita-lo. Um quarteirão adiante está situado o local onde se produz minha pizza favorita. Lembro de uma massa fina, com molho de tomate, folhas, queijo vegetal, alguns legumes e palmito. Meu estômago ronca ao perceber a fragância suave do forno que está com a chama acesa. Passo direto e viro a primeira esquerda, no semáforo. É uma rua mais larga, mais movimentada, mais longa. Desço até o semáforo que está aberto, cruzo a avenida e sigo adiante. Nesta rua estudei por dois anos. Fiz algumas amizades, tive alguns amores, aprendi bastante nesta época. Tinha acabado de sair da adolescência, já era um adulto, mas ainda possuía a vitalidade juvenil de perambular por estes lados. Vejo o local onde estudei, abandonado, sujo, morada de ratos e entulhos. O que aconteceu para chegar à essa situação? Passo direto, vejo o restaurante que não me deixaram entrar para almoçar enquanto estudante na região. Afinal, “um punk vestido a caráter não pode frequentar um lugar como esse!”, é proibido. Melhor passar fome do que me misturar com essa gente de caráter duvidoso. O restaurante está razoavelmente cheio, alguns poucos lugares vazios, todas as pessoas desfilando seus melhores trajes empresariais e sorrisos falsos. Dou uma risada irônica ao pensar nisso tudo, e sigo rotacionando o eixo do pedal, que rotaciona o eixo central de bicicleta. O movimento é contínuo. Depois do próximo semáforo, cortaremos uma avenida larga, de oito pistas, mão e contramão. É uma avenida interessante, com coqueiros no canteiro central. Desvio de duas tampas de bueiro que indicam que embaixo do pavimento há córregos, presos e algemados na claustrofobia da tubulação canalizada. Sigo adiante na descida para a praça da Igreja. É uma descida relativamente íngreme, onde preciso ter cuidado para não ser atropelado. Na primeira esquina, um carro se detém ao ver o sinal de “PARE” bem em frente a um outro restaurante onde eu costumava almoçar. Era caro, mas pelo menos me deixavam entrar para comer. A comida era boa, com muitas opções para quem é ovolactovegetariano. Na esquina de baixo chego na praça arborizada, que a Igreja transformou em um grande estacionamento. Penso comigo mesmo que nem se pode mais chamar isso de “praça”. Sigo direto frustrado com a imagem do apocalipse motorizado em um local que poderia, muito bem, estar liberado para o ser humano. Viro à direita, acesso a pista exclusiva de ônibus, mas que não possui separação física em relação às outras pistas, e aumento a velocidade. Esta rua já possui um movimento de automóveis de forma mais intensa. Acesso o corredor que foi criado entre os veículos que aguardam a luz verde, e me detenho por sobre a faixa de pedestres. Olho para a Avenida, sinto um fluxo de brisa fresca misturada com o calor dos motores que roncam atrás de mim. Na luz que me permite seguir, arranco a bicicleta do chão e tento forçar uma velocidade maior. Tenho sempre receio de que algum veículo mais veloz passará por cima de mim nessas arrancadas. Sigo para a região onde se situam vários hospitais e clínicas, logo após a Avenida principal da cidade. Vejo o Pronto Socorro e surge uma memória ruim de um atropelamento que sofri alguns anos atrás. O motorista ignorou minha presença e me acertou de lado. Parei no pronto socorro com fraturas no joelho e no calcanhar, 6 meses de molho, fazendo fisioterapia para conseguir voltar com as atividades rotineiras. Ainda acho que tive sorte de não ter sofrido algo mais grave. Ao passar pela portaria do Hospital agradeço a qualquer força da natureza por não ter sofrido nada mais preocupante. Sigo adiante, vou cruzar o viaduto e já chego em casa. O viaduto possui uma subida leve, mas eu conheço alguns atalhos para cortar caminho e evitar o pequeno morro. Geralmente eu gosto de subir morros, sentir minhas panturrilhas trabalhando, mas hoje eu estou cansado. Só quero chegar em casa, tomar banho e descansar. São dois quarteirões planos por baixo do viaduto, uma leve subida à esquerda, dois quarteirões de leve subida à direita, mais três quadras de plano e já me encontro do lado de lá. É um trajeto onde passo contra a mão dos automóveis. Corro risco, mas é necessário para evitar a fadiga. Cruzo o viaduto fazendo um movimento perpendicular, aproveitando a detenção dos automóveis no semáforo do início do viaduto. Passo em frente um bar onde tem as melhores batatas fritas, aquelas de verdade, pedaços grandes, frescos e com casca. Apesar da água na boca que surge com a lembrança, prefiro seguir mais um quarteirão e já avistar minha humilde residência. Acelero para ultrapassar a linha de chegada imaginária e solto um suspiro aliviado por chegar em casa com vida. Cansado, exausto e endorfinado. Passo a perna por cima do banco fazendo um movimento de saída e salto da bicicleta de forma ágil. Apoio a bicicleta na parede enquanto abro o portão. Guardo a bicicleta com tranca, pois no bairro são vários os furtos e roubos deste tipo de veículo. Abro a casa, tomo um banho e me sento no sofá para relaxar. Não consigo parar de pensar que eu deveria ter comprado a pizza logo quando subi na bicicleta.

La Idea, 2023 – Canon BF-800, Fomapan BW 100

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Corpo utópico

Hoje escreverei sobre utopia. Mas não sobre política, nem horizontes, nem fábulas, não vou trazer autores, mas talvez eu traga. E talvez eu fale sobre tudo, e sobre nada. Hoje tentarei ser espontâneo. A utopia a que me refiro hoje, é o lugar inexistente que passamos a saber da existência. Topia, vem de topos, lugar. A letra U que antecede a palavra sugere uma negação à esse lugar. Utopia se define, então, como um lugar sem lugar, um não-lugar, um lugar inexistente. Um lugar idealizado, fantasiado, perfeito, uma quimera.
Trago esse preâmbulo confuso para pensarmos nos nossos corpos, organismos físicos que não compreendemos muito bem como funciona. O corpo quando é dissecado em vida, possui um complexo de órgãos, músculos, tecidos, células, líquidos e outras matérias que trabalham em conjunto fitando manter a vitalidade dos seres humanos.
Nós raramente pensamos no lugar que nosso corpo e suas complexidades habitam. Porque comemos o que comemos, porque nos movimentamos, porque pensamos, nos relacionamos, porque nos excitamos e nos empolgamos com alguma coisa?
Há algo que reside no subjetivo de nossa existência que não possui um lugar concreto. E agora, enquanto escrevo, me pergunto se o corpo é uma utopia ou uma heterotopia, lugar utópico com posicionamento em um lugar real. Mas penso no que compõe o corpo, que sabemos que existe, que está lá, e que não nos damos conta da importância ou da existência.
No primeiro semestre do ano passado li o texto “O Corpo Utópico” de Michel Foucault, lançado pela N-1 Edições. Entre os exemplos que o filósofo cita no decorrer de suas linhas, algumas definições me chamaram a atenção. E me impressiona o fato de eu guardar esta ideia por tanto tempo antes de escrever sobre.
– O primeiro exemplo passa pela forma como descobrimos a existência de nosso corpo. Um bebê recém nascido, que passa seus dias com um universo muito limitado em relação ao corpo, aprende aos poucos que existe algo além de sua cabeça, e vai descobrindo seus membros e como controlá-los. Cada descoberta traz uma imensidão de possibilidades, e aqui cabe a analogia com criar um lugar para o que antes era inexistente, ou se desconhecia a existência;
– O segundo exemplo perpassa toda uma questão relacionada à ordem do sensível. São corpos que, apesar de se situarem na ordem material, nos são invisíveis. Nesse sentido, a exploração através do tato, do olfato, da audição, do paladar e da visão nos fazem conhecer, de outras formas, outros tipos de interação com diferentes matérias. Sentir e fazer sentir nos possibilita localizar algo que não conseguíamos imaginar ou prever. Olhar para a pele arrepiada é uma experiência diferente de sentir arrepios, ou de causar arrepios em alguém. A sensação se localiza na interação, e logo se torna utopia novamente;
– Por último, o desaparecimento de um lugar físico, de uma matéria, de um corpo. A transformação de algo localizado em uma utopia. O corpo não se deixa reduzir tão facilmente, ele quer existir em algum lugar. O corpo possui as próprias fontes de utopia, de imaginação, de sensibilidades, de localização ou perda de qualquer coisa. O que nos constitui como sujeitos, que nos faz pensar, refletir, nos movimentar, nos relacionar e desenvolver novos espaços, reais ou virtuais. O corpo é atuante e resistente ao esquecimento, até que é acometido por alguma doença ou debilidade em suas diferentes funções. Foucault escreve que em situações de enfermidade o corpo deixa de atuar, de sonhar ou de imaginar, e passa apenas a tentar sobreviver, resistindo ao que lhe destrói. O lugar real do corpo se torna um lugar desconhecido, talvez esquecido. O corpo perde suas subjetividades e funções para tornar-se apenas uma coisa, uma carcaça de anticorpos que busca sentido para a vida.
Todas as coisas existentes e inexistentes estão dispostas em relação ao corpo. Porém para cada corpo, uma disposição diferente de topias e utopias. O corpo é o marco zero onde desenvolvemos nossos significados, onde localizamos as utopias, de onde irradiam todos os lugares possíveis e impossíveis.

3 anos

Hoje se completam 3 anos do falecimento do meu pai. Eu gosto de sentar na frente do computador e escrever algo em sua homenagem sempre que chega o dia 25 de Janeiro. Esse dia é dedicado à escrita sobre a morte, sobre a vida, sobre as relações e sobre várias coisas que me lembram dele, ou dos momentos que pudemos vivenciar juntos. É uma forma de localizar a memória guardada em alguma utopia do meu cérebro e transformar em algo real.
Trago este tema da utopia porque penso na linha da vida em que meu pai nasceu, viveu, e teve o funcionamento de seu corpo interrompido por conta de um tumor. Fico aqui pensando em tudo que ele descobriu e vivenciou durante sua existência no plano terrestre. Tudo que ele pôde significar em relação ao que o afetava e interagia com ele. E eu me incluo nesse espectro luminoso de sentidos. Muitas dessas descobertas foram feitas junto à mim, ou em relação à mim, e muitas outras apenas me foram transmitidas.
Durante muito tempo, eu ficava me perguntando sobre o sentido da morte, porque morremos, e essas coisas. Mas acho que da mesma forma que nós topificamos o que está ao nosso redor na medida em que nos desenvolvemos, nos transformamos em utopias quando precisamos lidar com tudo que ainda nos é desconhecido. Não sabemos nada sobre doenças, até que precisamos lidar com alguma. E lidamos com nossas próprias doenças e com doenças das pessoas com quem nos relacionamos, com quem temos afetos. Tentamos localizar o corpo em algum lugar na esfera da vida, como se fosse um alfinete em um mapa-mundi, e nossos esforços de conter uma possível utopia dos corpos é incansável.
O corpo doente é apenas uma coisa que será mantida viva por profissionais da saúde, por fármacos ou por máquinas, e aí já não importam mais as subjetividades. Importa apenas o esforço em adiar a utopia da matéria por mais algum tempo.
E eu fico pensando aqui em todo o processo que meu pai passou. Foram apenas 3 meses da descoberta de um tumor até seu falecimento. E o corpo dele foi, praticamente, reduzido a algo que necessitava um esforço em ser mantido vivo, não importa qual procedimento cirúrgico, laboratorial, robótico ou químico seria utilizado para isso. Todos nos esforçamos com essa finalidade.
Talvez eu escreva isso sendo cruel demais com todo o processo, ou talvez não. Na hora tudo parece ser o melhor método, e mesmo depois nós ainda não sabemos muito bem o que foi tudo isso. No calor do momento eu escrevi sobre o processo de morte, e como significávamos tudo o que acontecia. Foi tudo muito tenso, e corrido, e exaustivo, e cansativo, e triste. Celebrávamos cada melhora como se ganhássemos um campeonato, e nos abatíamos a cada notícia desfavorável que chegava. Sempre achamos que algo mais poderia ser feito, ao mesmo tempo em que temos a certeza de que tudo que era possível de ser feito, foi feito. É um sentimento muito ambíguo e contraditório em relação à tudo que aconteceu.
Mas, enfim, prefiro ainda acreditar que meu pai foi descansar de tudo que ele vivenciou e descobriu. De todas as relações que ele significou e que já era hora de fazer o corpo descansar da luta contra o surgimento da utopia.
E ainda que o corpo do meu pai tenha se tornado novamente uma utopia, o lugar que ele ocupa em minha vida segue muito bem localizado na minha memória, nos meus afetos, as minhas topias utópicas.
Cuidem de seus corpos.

Cinzas sendo depositadas no rio. Meu pai adorava nadar. A água será a última topia do corpo dele.




Treino de desenho

Desde o final do ano passado eu tenho tentado desenhar casas que eu salvo do Pinterest, utilizando sempre uma mesma estética, praticamente os mesmos materiais e tals. Tem sido uma atividade bem massa e eu consigo perceber uma evolução no quesito desenho de observação e na utilização da imaginação para compor e colorir.
Ano passado ou retrasado, não me lembro, tinha feito uma pintura em aquarela de um conjunto de casas ocupadas. Eu curti muito o desenho e a pintura, mas acho que o céu hoje não me agrada a forma e as cores que utilizei. Depois publico foto dela (acho que me esqueci de publicar ela aqui, rs). Mas isso me deu uma certa vontade de estudar mais, de arriscar mais.
Ano passado cheguei a fazer 4 desenhos/pinturas de casas utilizando marcadores chanfrados e bico de pena com tinta nanquim. Foram experiência interessantes, pude desenvolver bem a imagem e também aprendi muito a usar os marcadores a base de álcool. São os mesmos marcadores “tons de pele” que eu tinha comprado um tempo atrás e que até cheguei a fazer alguns desenhos com eles em um breve teste. Minha amiga Jay tinha comentado que os marcadores a incomodavam pelo fato de que ficam muito “marcados” na imagem (e, de fato, ela faz umas passagens de tons bem suaves, muito diferentes da marca que os marcadores deixam no papel), e eu fiquei pensando em como poderia tentar escapar desse tipo de efeito mais grosseiro. Ainda que várias destas primeiras imagens possuam traços bem marcados, com o tempo eu fui aprendendo a utilizar melhor as potencialidades destes marcadores. As fotos a seguir mostram a sequência dos desenhos no sketchbook que eu separei exclusivamente para isso.

House-sketcher depois de estudar melhor

Depois de um tempo pintando somente com as cores “tons de pele” do kit que eu tinha comprado, decidi investir em mais cores, pois me sentia muito limitado aos tons de marrom. Infelizmente esses marcadores são muito caros, e acabo comprando 1 ou 2 unidades apenas. Mas eu descobri que o ideal é sempre comprar cores parecidas, um tom claro e um tom médio/escuro, pois assim fica mais fácil fazer as passagens entre as cores.
E eu fico falando tudo isso sobre cor, mas eu nem sei se isso necessariamente faz sentido, pois sendo daltônico essa parte técnica é um pouco mais complicada.
Após estes estudos, eu acabei comprando um curso de desenhar casas no Doméstika. É um curso bem básico, mas que eu curti muito. Me senti bem confiante, por exemplo, de desenhar as casas sem fazer esboço com lápis, já começar com o bico de pena e o nanquim, na tora. Me senti muito profissional fazendo isso, rs. Também acho que o curso me ensinou a utilizar melhor o espaço do papel, centralizando a casa e deixando espaços vazios no entorno também. Isso deixa o desenho mais leve. Outra coisa foi a utilização da cor branca. No curso, o professor utiliza uma Posca branca para fazer uns efeitos de luz que eu achei bem interessante. Ele também ensina bem a fazer a degradê com os marcadores, transformando a borda grosseira da tinta em algo beeeem mais suave. Outra coisa foi a confiança em agregar elementos do meu imaginário no desenho. Antes eu seguia a foto à risca, alterando poucas coisas. Nos próximos sketches vocês perceberão que as casas possuem mais elementos e mais ousadia também. Acho que curti esses modelos.

Todos os desenhos foram digitalizados e levemente tratados para se assimilarem melhor ao que está no sketchbook. Subi um pouco o contraste, diminuí o brilho e dei uma calibrada nas cores (mas para um daltônico, pode ser que esteja tudo diferente, hahaha). Quando vocês me fizerem uma visita, peça para ver meus sketchbooks, e aí vocês podem tirar as próprias conclusões.
O projeto final lá do Doméstika pode ser visto clicando aqui.
Enfim, gostaria que vocês pudessem me fornecer opiniães e comentários sobre esse processo também. O que acharam?

Novidades na loja

Simmmm, panos de prato para pessoas revoltadas e descoladas (ao mesmo tempo) estão disponíveis para compra na loja virtual.
Algumas estampas são exclusivas de panos de pratos, outras são aproveitamento de telas das camisetas.
Os panos de prato são feitos daquele material chamado PÉ DE GALINHA, que dizem ser os que mais secam e os que mais duram. Pelo menos é o que reza a lenda.
Infelizmente os de cor preta são levemente mais caros que os brancos.

Queimando olho

Domingo de manhã eu queimei meu olho esquerdo. Eu não estava brincando com fogo, nem olhei um eclipse sem raio-x. Não teve calor, nem chamas e nem foto-ofuscamento. Foi uma queimadura química provocada por agentes tipo C-Corrosivos.
Traduzindo a situação, eu guardei a manhã de domingo para tirar fantasmas das telas de serigrafia. Os fantasmas são manchas químicas e gordurosas que se fixam nas telas, e ainda que não dê nenhum problema, elas podem dificultar a fixação da emulsão fotossensível, fazendo com que a tela abra nas regiões frágeis e a impressão fique manchada.
Eu comprei o Remoclean Removedor Mono, comprei luvas de neoprene resistentes à corrosão, comprei óculos de segurança e máscaras. Foram 3 sessões de limpeza, e a ideia era tirar os fantasmas de quase todas as telas desgravadas que tenho aqui no meu estúdio. Nas duas primeiras sessões ocorreu tudo certo. Passo o produto, aguardo 15 minutos, jateio com água e a tela fica extremamente limpa, sem vestígios que fora outrora utilizada.
Na última sessão, domingo, me aguardavam as maiores telas, que eu uso com menos frequência e por isso eu estava em um clima mais tranquilo e, aparentemente, mais desatento. Eu logo coloco os Equipamentos de Proteção Individual (EPIs) e já inicio o processo de passar o Remoclean nas telas grandes. Eis que o primeiro momento horrível de 2024 aparece.
A esponja de nylon agarra na lateral de uma das telas e ricocheteia em minha direção parte do produto químico, corrosivo, ácido. Foi a pior maneira de descobrir que eu havia me esquecido de colocar os óculos de proteção. Várias coisas passaram pela minha cabeça. Com o impacto e o início da ardência, minha primeira reação foi tapar o olho com a mão e correr em direção a um tanque. Segurei minha pálpebra aberta e deixei água corrente escorrer no olho esquerdo, que ardia em chamas. Não, eu não enxergava nada, tudo embaçado à minha frente. O nervoso que eu tenho com qualquer coisa que envolve olhos foi deixado de lado para que eu pudesse salvar minha visão. Meu olho ardia como se fosse uma bola de fogo.
Após alguns minutos debaixo da torneira do tanque, entrei em casa para enxugar a cara enquanto acordava minha companheira com os dizeres: “ACORDA, ME LEVA PRO HOSPITAL, QUEIMEI O OLHO!”.
Foi difícil compreender que eu poderia perder parte da visão naquele momento. Eu lacrimejava muito, e eu ainda não sei se eram lágrimas provenientes da resposta do corpo à queimadura ou ao choro pela ardência e pelo vacilo que eu tinha dado naquela manhã. Minha companheira levanta correndo, estava conversando com alguém no celular. Ela me pergunta “Qual produto que é? Quais os ingredientes?” e eu só consigo responder que eu não sei, só sei que é corrosivo. Ela conversa com uma amiga que é oftalmologista, e nós buscamos por informações na embalagem do Remoclean. R20/21/22-35 S 7/9 – 26-36/37/39-45. Esse código são as únicas informações que aparecem. Acessamos o Boletim Técnico no site da empresa fabricante, e na seção dos ingredientes um belo “Segredo de Fábrica” frustra nossa intenção de descobrir como tratar a queimadura.
Meu olho ardia, e eu seguia segurando minhas pálpebras abertas debaixo da torneira aberta com água corrente. Menos mal que, apesar da ardência e do embaçamento, eu conseguia enxergar alguma coisa. Saímos de casa, seguimos para o hospital para consultar com um plantonista. Após um tempo de espera razoável tenho meu olho esquerdo analisado por um profissional.

Ele me diz que eu tive sorte, pois havia apenas uma irritação na parte branca do olho, nada atingiu córneas.
Ele me disse que eu ainda ficaria uns dois dias com muito incômodo no olho.
Ele me disse que eu deveria pingar um colírio anti-inflamatório de 6 em 6 horas, durante 5 dias.
Ele me disse que eu deveria pingar colírio comum de hora em hora, pra ajudar na lubrificação.

Hoje é meu último dia de colírio anti-inflamatório. Ele arde. Eu nunca tive o costume de usar colírio. Não me agrada o gosto que surge na garganta após pingar qualquer colírio nos olhos. Eu não sabia pingar, sempre errava a mira. Depois de alguns dias pingando, já me tornei expert em pingar somente no olho. A prática leva à perfeição. E eu que jurei que sairia do hospital com um tapa-olhos, saí apenas com uma sensibilidade à luz. Não conseguia ver telas, doíam meus olhos. Eu tinha uma sensação esquisita de que havia areia debaixo da minha pálpebra superior. Meu olho inchou, ficava fechado bastante tempo, e as pálpebras grudavam com a quantidade de remelas que surgiam. Na terça-feira meu olho amanheceu aberto, com muito menos incômodo, mas ainda lacrimejando bastante.
Tudo passou pela minha cabeça nesses dias para cá, tudo.

Eu ainda não tive coragem de limpar os fantasmas das telas maiores.

Animaçãozinha relax de momentos tensos

[Stencil] A Grande Onda de Kanagawa

Interesse

Não me lembro bem quando foi que essa imagem se fixou tanto no meu imaginário. Mas gosto de pensar que o interesse que tenho em fenômenos da natureza geraram essa fixação. Em 2004, acompanhei atentamente todos os vídeos curtos e de baixa qualidade que circulavam na internet mostrando o tsunami da Indonésia. Tragédia que eu assistia o tempo todo, cada segundo de gravação. Quando entrei no curso de Geografia em 2009, devorava os livros de geologia e de cartografia, minhas áreas preferidas. A primeira e única vez que vi um vulcão foi em 2012, sobrevoando a Cidade do México. Paixão à primeira vista. Vejo vídeos de terremotos em diferentes localidades e fico imaginando como será essa sensação da terra se mexendo. Vi praticamente todos os vídeos do tsunami de Fukushima, 2011, além de ver vários vídeos de erupções vulcânicas, inclusive o canal ao vivo das Ilhas Canárias. Me lembro bem da minha professora Mônica, de geologia, falar sobre vulcões que expeliam lava continuamente na América Central. E até hoje eu tenho o desejo de ver isso ao vivo. Natureza que tudo destrói. Não é um sonho de destruição, mas uma certa admiração da nossa pequenez frente ao mundo.
Esse interesse que eu tenho de vivenciar certos fenômenos que inexistem atualmente nesse pedaço de terra em que vivo são algo que me movem. Imagino que observar a gravura “A Grande Onda de Kanagawa”, do mestre Katsushika Hokusai, talvez me traga um pouco dessa sensação. Não me lembro qual a primeira vez que a vi, mas me lembro bem de analisar cada centímetro desta gravura.

Produção

Foi em 2013 que eu tive a ideia de começar a reproduzir “obras de arte” com a técnica do stencil. Me propus a cumprir o desafio de logo começar com a imagem que circula no meu imaginário. De tanto observar os elementos da gravura, já tinha uma noção de como fazer. O processo não foi nada fácil. Na época, eu não sabia fazer separação de cores no Photoshop, e o processo foi completamente manual. Fiz uma impressão da gravura em tamanho aproximado de A3. Separei uma dúzia de radiografias, papel carbono branco, e fiz o decalque e as separações de cores de forma completamente manual. Não tinha noção de como iria ser o resultado, até porque tinha dúvidas se meu daltonismo me permitiria compreender as diferenças tonais. Mas não perdi muito tempo com a ansiedade e logo já comecei os cortes.
As camadas possuíam diferentes níveis de complexidade. O que era água, seriam três cores, sendo a primeira com muitos detalhes e dando contra forma à parte branca da onda, e outras duas camadas tonais complementares.
O céu, apenas duas camadas, envolvidas em borrifos e degradês para simular os tons da gravura original. As canoas, duas camadas de cores, tom sobre tom. As pessoas, apenas a camada das roupas.
Por último, o mais complexo. Uma camada de linhas finas que estariam em toda a imagem; repleta de pequenos detalhes essenciais para uma boa visualização; e uma última camada com as bolhas brancas saindo das ondas, além do papiro de informações sobre a obra que, nesta imagem, está presente no céu. Ambas camadas apenas funcionariam se todo o encaixe das cores anteriores estivessem perfeitos.

Uma questão que me deixou bastante inseguro no início foi a utilização das cores. E, nesse sentido, me esbarrei em duas questões:
– Em primeiro lugar, cada referência da imagem que eu encontrava nas buscas online me traziam cores distintas para a água e, de forma ainda mais evidentes, para o céu ao fundo. As variações eram enormes.
– Em segundo lugar, eu estava sujeito à disponibilidade das cores em spray que eu encontrava. Não é uma tarefa fácil achar a tonalidade certa, depende da marca e da disponibilidade da loja em ter o que precisamos. Isso, sem contar, que a cor de referência da lata nem sempre é a mesma da tinta quando pintada.

Lágrimas

Em 2015, tive a oportunidade de ver uma impressão da gravura ao vivo, no Metropolitan Museum. Vi tudo com meus próprios olhos e boatos dizem que algumas lágrimas escorreram. Ver a gravura in loco é muito diferente de ver as digitalizações, com suas correções de matiz e contrastes. Ver de perto cada veio da madeira que aparecia na impressão, a utilização das cores e degradês, cada detalhezinho de entalhe. Tudo isso me emocionou bastante.

Acho que essa experiência me trouxe uma sensação de que tudo que eu tinha visto antes era bem diferente, que as imagens de internet são em muito superadas pelas experiência ao vivo. Pra quem curte pensar na técnica, no processo, penso que somente o contato direto dos olhos com a impressão nos permite ver a grandeza e a riqueza dos detalhes, a forma de entalhe e tratamento da madeira, o sangue e o suor que ali foram depositados.
Por incrível que pareça, ver a gravura ao vivo me deixou mais confiante em experimentar outras combinações de cores, tentar criar outras atmosferas, ousar mais.

Acho que a experiência de ter feito esse stencil, todo de forma manual, me trouxe uma sensação das próprias limitações das técnicas, apresentando suas diferenças estéticas e uma sensação de que, cada vez mais, a xilogravura é algo muito mais complexo que uma mera estética.
“A Grande Onda de Kanagawa”, com toda sua fúria e sua beleza, abraçando o Monte Fuji, enquanto navegantes são espectadores e participantes deste momento, é algo que me toca profundamente.

Vídeo curto sobre as etapas de produção

Talvez as pessoas não tenham noção do que foi pensar e produzir essa impressão em stencil. Do trabalho em cortar, do trabalho em imprimir todas as 9 camadas de matrizes, com aproximadamente 14 cores sendo utilizadas. A dimensão disso tudo se perde com o tempo, e apenas o produto é apresentado, com suas falhas de impressão, borrões de tintas, inexatidão de cores. Mas acho que talvez tenha sido um processo tão relevante e significativo para mim que não posso ignorá-lo do meu histórico. O tempo de observação, os cuidados com o corte, a reflexão sobre as cores. O processo de impressão em time-lapse pode ser conferido a seguir. Produção de várias impressões em spray, muitas delas com cores experimentais e muita paciência.

Processo completo de impressão de todas as camadas

Ruim demais para ser mentira #3

Piscina do hotel

Quando eu era pequeno costumávamos viajar para a cidade de Aparecida do Norte, em São Paulo. Eu digo “costumávamos” porque na minha cabeça parece que foram diversas vezes, mas a memória sempre me engana e pode ser que tenham sido 2 ou 3 vezes no máximo. Minha avó paterna faleceu de câncer quando eu tinha uns 3 anos de idade, e eu tenho quase certeza de que essa viagem era feita para prestar as devidas homenagens cristãs à ela. Mal sabiam que a minha relação com as religiões seria destruída alguns anos depois, mas talvez isso não venha ao caso agora.
Lembro de uma viagem bem específica, que saímos de carro eu, meu pai, minha irmã, minha tia e meu avô, e fomos pipocando nessas cidades turísticas do sul de Minas, onde não há muito o que fazer e para todos os lados têm pessoas idosas caminhando com seus suéteres de cores pálidas em busca de águas termais que prometem trazer a juventude de volta. Na frente do veículo sentava meu pai, que dirigia o carro do meu avô, e meu avô sentava no banco do carona. Atrás, eu, minha irmã e minha tia. Eu sempre tinha que ir na janela, pois viajar me dava enjoos e eu sempre vomitava pela janela do carro. Pensando agora, nem sei porque me levavam nestas viagens se eu só sabia ‘dar trabalho’.
Não lembro se ainda iríamos para Aparecida do Norte ou se já estávamos retornando pra Belo Horizonte quando nos hospedamos em um hotel chique no Sul de Minas. Pode ser que tenha sido São Lourenço, Lambari ou Caxambu, não me lembro. Mas a minha família inventou de andar de charrete pra dar uma volta pela cidade. A égua que nos guiava, de nome Malvina, fez questão de cagar o caminho todo, nos deixando bem desconfortáveis durante o passeio. Minha tia, que adorava uma zueirinha leve, logo passou o resto da viagem dizendo que eu namorava a Malvina. O cheiro era horrível e eu me lembro do terror que foi tudo isso apenas de escrever essas memórias. Terror não apenas do cheiro, mas de alguém achar que eu realmente estivesse namorando com uma égua de diarréia chamada Malvina.
Mas talvez esse não tenha sido o fato mais marcante desta viagem. O hotel, com todas suas chiquerezas possíveis, tinha uma piscina gigante, com aquele bares que você pode ficar sentado em bancos dentro da água enquanto toma seus bons drinks e se diverte de montão. A piscina tinha uma rampa em uma das extremidades, era super acessível a qualquer pessoa.
Enquanto eu nadava, uma forte dor de barriga me pegou de jeito, e eu saí correndo da piscina para ir ao banheiro. Saí perguntando onde havia um banheiro por ali e me disseram que no saguão havia. No saguão do hotel, o banheiro estava ocupado e seu ocupante tardava demais para sair. Eu tive a ideia de voltar na família e pedir a chave do quarto em que estávamos hospedados para utilizar o banheiro do quarto sem passar por constrangimentos em público. Eles disseram que estava na recepção, que eu poderia pegar lá. Fui correndo na recepção e me disseram que a chave estava com a funcionária da limpeza, pois ela estava organizando as acomodações. Subi as escadas correndo e cheguei ao quarto, a porta estava aberta. Entrei com uma felicidade imensa já pensando no banheiro limpinho que eu usaria, mas, para o meu azar, o banheiro estava sendo limpo naquele exato momento. Eu fiquei desorientado, sem saber o que fazer naquela situação. A moça disse que ainda iria demorar um pouco, e enquanto isso minha dor de barriga só aumentava.
Eu voltei desesperado pra família que estava na piscina, mas a dor de barriga era tanta que eu me contive na rampa de acesso. Não deu tempo de mais nada, sentei na beiradinha da rampa e fiz o que devia dentro da sunguinha. Ao terminar, ajustei a folga da sunga e liberei os sólidos na piscina enquanto já saía correndo. Não falei nada com ninguém, apenas voltei para o quarto para ver se o banheiro já se encontrava limpo para que eu pudesse tomar banho. Não disse nada, não citei nada, omiti tudo que aconteceu nesse dia. Fui uma criança feliz, e isso seguiu pela juventude toda e até pela fase adulta. Nunca me importei.
***
Há alguns anos atrás, estávamos em um evento de família e minha irmã, inocentemente, perguntou “vocês se lembram de quando a gente estava em um hotel e apareceu um cocô boiando na piscina? Foi o caos, todo mundo saiu correndo, tiveram que desinfetar tudo!” e eu somente consegui rir discretamente enquanto escutava isso. Sim, ela ficou chocada quando ficou sabendo que tinha sido eu o autor desta proeza, ainda mais depois de todos esses anos de segredo absoluto. Foi a única notícia que tive do meu feito infantil. Eu implantei o caos na piscina de um hotel chique do Sul de Minas. Malvina deve ter ficado orgulhosa de mim.


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Seguiremos

Com os últimos suspiros de 2023 vem a vontade de escrever algo. Hoje estava pensando no que pudesse ser algo similar a uma certa retrospectiva desse ano que termina, mas acho que nada que eu escrevesse poderia representar tudo que foi. Em 2023 minha vida mudou drasticamente, teve aumento do número de clientes, de parcerias, de parceragens, de produção autoral e/ou terceirizada. Ingressei no mundo acadêmico e, ainda que eu esteja tentando me encontrar neste espaço, tenho curtido muito as pesquisas que tenho feito. Me propus a circular mais também, participei de algumas feiras em outras localidades e com isso acho que tenho conseguido firmar alguns laços importantes e ampliar as redes, conheci muita gente que significou muito para mim também. Muitas trocas importantes aconteceram nessas interações. Li bastante, tanto literatura quanto teoria, e produzi muito também na área criativa. Consegui escrever sobre minhas obras no blog, consegui inventar histórias e escrever relatos sobre minhas experiências também. Tenho me arriscado mais, sobretudo em situações em que eu havia perdido algumas das minhas habilidades. Também vivi fora das redes sociais por um tempo e, ainda que eu tenha desaparecido das timelines e feeds, foi a melhor ideia que tive em muito tempo. Vamos ver como será no próximo ano. Enfim, foi um ano ótimo. Obrigado por tudo.
Pego todas essas experiências e só consigo imaginar no porvir. O que será que teremos pela frente? Não importa, tô mais confiante que nunca.
Pego referências de DISCARGA e de FUN PEOPLE para encerrar este ano com um convite à luta, à memória, à resistência, e todas as possibilidades de vida que nos foram negadas/retiradas/arrancadas. Foi graças ao processo de resistir ao poder e às formas de dominação, de conseguirmos nos associar para firmar laços e de construir possibilidades distintas de vida que não desistiremos. Por AMOR seguiremos todxs de pé. Façamos nós mesmos o mundo que almejamos.
Pode vir 2024, estamos preparadxs!

[xilogravura] Pula a cerca/Brinca el borde

Imaginário

Eu não me lembro quando meu interesse por algumas questões que aconteciam no México surgiram. Eu escutava música mexicana, a maior parte ligada ao punk, e bandas de outros lugares que também dialogavam sobre as questões do México. Desobediencia Civil, Molotov, Los Crudos, Brujería e Vieja Guardia são alguns exemplos. Eu gostava de ler as letras que falavam sobre os zapatistas, sobre o narcotráfico, sobre história da região, revoluções, guerras, sobre corrupção, sobre estilo de vida e sobre a migração. Era uma forma de ter certa sensação de curiosidade poder imaginar as diferenças desta região para onde vivo aqui no Brasil, fazer assimilações, também estudar o idioma espanhol. Eu curtia muito escutar punk que cantava em espanhol, eu tinha a sensação de que as letras eram mais complexas, mais diretas e tratavam sobre mais temas que as bandas daqui. Ainda que essa tenha sido uma suposição equivocada da minha parte, escutar bandas como Los Muertos de Cristo, @patia No, Fun People e Sin Dios (uma música desta última gerou o nome que uso desde 2008: La Idea) me davam uma noção do quanto eu poderia aprender e imaginar sobre as diferentes questões do mundo.
Em 2008, eu assinava o jornal Le Monde Diplomatique. Era uma jornal legal, porém muito acadêmico e muito denso, e eu acabava ficando de saco cheio de algumas matérias cuja escrita era técnica demais pra minha compreensão na época. Em abril daquele ano, a edição que chegou trazia uma matéria sobre algumas questões que a região da fronteira estava passando por conta da implantação do NAFTA (Acordo de Livre Comércio da América do Norte) que entrou em vigor no primeiro dia de 1994, e 14 anos depois os agricultores mexicanos estavam passando aperto com a industrialização forçada e com as isenções tributárias impostas pelos Estados Unidos ao México.
A matéria dizia respeito a um lugar muito específico: Ciudad Juárez. Cd. Juárez é uma cidade que fica no extremo centro/norte do país, no meio do deserto, bem na divisa com o Texas (Estados Unidos). A cidade do lado de lá da fronteira, El Paso, era considerada a cidade mais segura dos Estados Unidos, e a do lado de cá, Cd. Juárez, a mais violenta do mundo. As cidades antes se chamavam apenas Paso del Norte, e com a guerra entre Estados Unidos e México em 1844, onde os Estados Unidos usurparam, através de um acordo, metade das terras mexicanas, o Rio Bravo que cortava Paso del Norte ao meio foi eleito como o demarcador da fronteira, separando a mesma cidade entre dois países distintos. Pelo fato da localidade se encontrar no meio de uma região desértica, as duas cidades se desenvolveram de maneira conjunta e dependente, até o fechamento das fronteiras.

A fotografia que acompanhava a matéria me chamou atenção: Um homem pulava a cerca que divide as duas cidades. Sim, é uma cerca, não um muro. Na real, são várias cercas em sequência, logo após da borda do Rio Bravo, hoje canalizado, com pistas para carros de vigilância. O acesso entre os dois países se dão por pontes, onde tem a Aduana de ambos países, sendo que para entrar no México é super rápido, mas para entrar nos Estados Unidos costumam ter muitas filas e fiscalizações. Em Cd. Juárez se encontram 4 pontes para veículos e 1 para trem de carga, e as pontes são a principal simbologia entre essa confusão que significa ser um cidadão fronteiriço, cheio de aberturas culturais, sociais, identitárias e de fechamentos comerciais e de fluxos de pessoas ao mesmo tempo.
Em 2012, eu deixei de imaginar o que seria essa região e morei em Juárez por 6 meses. Eu e minha companheira fomos estudar na Universidad Autónoma de Ciudad Juárez (UACJ) e pudemos vivenciar um pouco essas contradições e ambiguidades presentes na vida fronteiriça. Sobre a vida em Juárez, talvez seja tema para outra postagem, mas quero deixar registrado essa fotografia que eu tirei de dentro do ônibus quando ia para o campus das Ciências Humanas e Exatas. Era um viaduto que acessava a avenida que corre rente ao Rio Bravo, margeando ele. Na foto, vemos a borda do Rio canalizado, a pista por onde passa “La Migra” (viaturas de controle de migração e de passagens não-autorizadas), a série de cercas que separam os dois países e El Paso ao fundo.

Viver na fronteira é algo muito diferente do tudo que eu pudesse, um dia, ter imaginado. São muitas influências dos Estados Unidos, ao mesmo tempo que se conserva um identitarismo que se diferencia de quem está do outro lado. Juárez não possui edifícios altos, possui muitas construções antigas, muitas casas abandonadas por conta da violência, pouca vida nos espaços públicos. Mas as pessoas que vivem em Juárez fazem acontecer todos os tipos de corres para que a cidade não morra. Conhecemos vários coletivos de arte, gente que intervém nas ruas o tempo todo trazendo essa memória, agitando a cultura e criando espaços e possibilidades para que qualquer um tenha orgulho de tudo que é produzido ali (não estou falando da indústrias/das maquiladoras!).

Gravando

Alguns anos depois, provavelmente 2018 ou 2019, comecei a trabalhar em uma xilogravura que pudesse trazer um pouco dessa memória que eu tenho, e que me gerou tanta inquietação na época. Eu não quis intervir em absolutamente nada. Todos os elementos da fotografia eu tentei trabalhar de uma maneira simples, porém detalhada.

Fotografia original /// Meu desenho com marcador Sharpie que originou a xilogravura

O processo de gravação foi lento. Várias semanas cavucando a madeira, sobretudo na parte da cerca/grade. Foi um processo desafiador. Eu gosto muito da estética da xilogravura, bem marcada, contrastada, com traços mais expressivos. Ainda que no linóleo eu também consiga efeito similar, a textura que a madeira deixa como se fosse um rastro de destruição é algo que soa bem aos meus olhos.

Acho que a memória sempre traz coisas legais interessantes quando pensamos em produzir algo. Eu gosto de trabalhar com fotografias muito por conta disso também. Elas possuem uma história que, de alguma forma, se entrelaça com minhas experiências. Nunca achei que algum dia eu iria sair do país, nunca tive condições econômicas para tal façanha. E ~de repente~ consigo uma bolsa de estudos para vivenciar algo que eu só imaginava enquanto escutava músicas ou lia reportagens. Acho que esses significados que a gente dá é o que vale a pena todo o processo de se produzir alguma coisa na áreas das artes visuais.
Pula a Cerca pode ser traduzido como Brinca el Borde, nome que dei para esta produção. Mas vou parafrasear uma banda punk muito massa, Propagandhi, e já deixar um “FUCK THE BORDER” bem grande aqui. Por um mundo sem fronteiras!
Abaixo, seguem algumas fotos da gravura impressa, o resultado final, seguida de um vídeo da gravação da matriz que contém imagens de como eu fiz alguns destes detalhes. A gravura pode ser adquirida na LOJA VIRTUAL.
Obrigado pela atenção,
Até.

Homenagem a Nêgo Bispo

Antônio Bispo dos Santos faleceu dia 3 de Dezembro de 2023. Eu me lembro bem do momento em que fiquei sabendo da triste notícia. Eu estava em Brasília, participando da Feira Gráfica MOTIM, que teve esta edição no Museu Nacional. Eu olhava para minhas gravuras expostas, e com destaque na minha banquinha havia a “Transfluência“, a gravura que fiz a partir de uma entrevista com Nêgo Bispo presente no livro “Mobilidade Antirracista“. Eu me inspirei muito na época ao ler cada palavra de Bispo. Já fazia um tempo que não produzia nada tão significativo e profundo, e esse foi um trabalho de pesquisa conceitual e imagético que me fez gastar muita energia no desenvolvimento. E é curioso porque muitas pessoas se interessam pela gravura, pela postagem que fiz falando sobre o processo de produção dela, mas ela está longe de ser um produto lucrativo pra mim. Acho que até hoje eu vendi apenas 1 cópia dela, para um casal de médicos que haviam parado na minha banquinha numa feira em BH. Mas talvez esse diálogo sobre tentar ~viver de arte~ não seja o mais adequado para este momento. Desde o dia 3 que eu fico pensando no que poderia fazer para prestar essa homenagem à uma pessoa que me tirou um pouco da inércia de ideias, e me fez repensar um pouco sobre a forma como eu produzia algumas coisas, sobre algumas associações que fazia enquanto artista visual. A entrevista dele me fez voltar a pesquisar para produzir. E eu digo que estava em dúvidas se fazia uma homenagem ou não com o receio de cair no oportunismo capitalista de almejar lucro aproveitando o momento do óbito de alguém. E isso não é e nunca será minha intenção aqui. Hoje eu entendo o quanto eu gostaria de agradecê-lo pelas ideias que ele expressou e que ecoaram na minha cabeça. Talvez ele nunca saiba da importância que ele teve na minha vida. Hoje mesmo eu estava pensando se eu tomei conhecimento da existência dele tarde demais… Mas acho que eu o conheci no momento certo em que suas ideias dialogavam as minhas. Tudo vibrou na mesma frequência.

Hoje eu fiz uma ilustração do Nêgo Bispo usando a referência de uma fotografia em que ele apoiava a cabeça nas mãos que se entrecruzavam na nuca. Ele olhava para cima, descansado e tranquilo. Um momento de paz e suavidade. Ao fundo, coloquei a imagem em marca d’água da gravura que fiz baseado nele, Transfluência. Nessa ideia, o conhecimento dele seguirá viagem através de outras matérias, e se recriará em outros povos. Tudo segue conectado.

VIDA LONGA NÊGO BISPO! OBRIGADO POR TUDO!

[xilogravura] Propaga Tus Ideas

Essa é uma gravura produzida, provavelmente, nos idos de 2018. Eu já estava com o antigo atelier no bairro Aparecida, ainda em suas primeiras semanas de atividades. Eu gostava bastante de experimentar novas formas de desenvolver gravuras. E esse daí foi um experimento que deu muito certo.

Na minha pesquisa por imagens, encontrei esta fotografia de Jamel Shabazz. Esse tipo de fotografia que marca uma época de desenvolvimento e efervescência de várias movimentações underground, ligadas à subculturas é algo que me agrada muito. Martha Cooper e Jamel Shabazz são fotógrafos que registraram toda uma cena que envolvia os 4 elementos: RaP (Ritmo e Poesia), Graffiti (intervenções visuais), Break Dance (danças de rua), DJ´s/MC´s (quem domina os scratchs e os samplers/quem domina a rima).
E eu costumo buscar referências nessas fotografias pra desenvolver algum trabalho, ou treinar alguma técnica.

Essa imagem é interessante. Um homem com seu boombox, olha pra câmera e faz um aceno de quem tá curtindo muito. Eu recortei a figura em primeiro plano, fiz uma cópia em toner, e fiz uma transferência prum compensado de pau-marfim, que eu costumo usar para as xilogravuras.
Depois quadriculei toda a madeira em espaços de 1×1 cm e tudo que veio depois foram intervenções manuais, com marcadores. Fiz os raios saindo do fundo pra dar uma noção de profundidade, e fiz as letras de forma manual, tentando manter um padrão de escrita.

Depois passei a brincar um pouco com os contrastes, sobretudo nas letras. Ora espaço, ora preenchimento, me diverti enquanto cavucava cada detalhe. Na impressão, o efeito me lembrou um painel luminoso, que ora acendia uma letra, ora outra.
Nesta matriz eu também usei uma micro retífica que eu comprei da China, mas ela era muito vagabunda e mais amassava a madeira que retirava matéria. Acabei desistindo de usar.
No fundo, optei for fazer linhas verticais com a goiva em V, dando uma sensação de passagem tonal pra quem observa.

Propaga Tua Ideas” pode ser traduzido, literalmente, como “Propague Suas Ideias” e foi uma proposta que eu achei que tinha a ver com meus ideais e com a sensação que a foto me transmitia. A Boombox, com seus alto-falantes, consegue fazer soar muitas ondas sonoras, que buscam a captação de ouvidos pelo caminho. Essas ondas podem ser batidas ritmadas, podem ser poesia, e podem ser palavras de protesto. A música sempre foi uma ferramenta interessante para divulgar ideias e agregar mais pessoas nas redes de ação e solidariedade. Elas nos trazem uma sensação de pertencimento e de voz ativa. Uma identificação com algo que está sendo proposto. Além do mais, ouvir música é muito bom. Junta o útil ao agradável.

Primeiros testes de impressão

É uma gravura que eu, particularmente, curto muito. Com certeza não é a favorita da galera que costuma comprar algo da minha produção. Mas ela me traz algo de “Aproveita as ferramentas que estão disponíveis e diga pro mundo a importância do que você tem em mente. Foda-se o estilo, foda-se a estética, foda-se o consumo. Somos tudo e somos nada. Só sei que coletivamente chegaremos em algum lugar!“. Ou talvez algo assim.

A parte mais legal de escrever sobre um trabalho, é relembrar como ele foi desenvolvido. Eu vejo fotografias da época, e vários momentos retornam à memória, não apenas da produção, mas do contexto em que eu estava. Sobretudo nessa época eu já estava em um movimento de repensar algumas ações, algumas teorias e alguns métodos sobre o caminho em que estava traçando. Ainda que, provavelmente, aquele caminho planejado tenha se alterado no decorrer de todos esses anos, acho que hoje me encontro num lugar interessante por conta dessas reflexões e decisões do passado.
Enfim, por hoje é isso.
Me digam depois o que acham.
Abraço.

Lapsos de Tempo #4

Passagens

Era meados da tarde. O sol vinha na diagonal, forte e intenso. Estou entre automóveis, seguindo a linha tracejada branca que separa as pistas. Tenho olhar atento para setas piscadas e movimentos bruscos. Qualquer coisa pode significar minha queda. Tenho receio de ultrapassar, mas me sinto seguro para acelerar quando vejo os olhos do motorista pelo retrovisor. Ele me observa por tempo curto, segundos que me indicam a segurança da ultrapassagem. Ele me vê, desloca um pouco para a direita deixando vão aberto. Não sei se ele está preocupado comigo em cima da bicicleta e o estrago que eu poderia sofrer em um possível choque, ou com a possibilidade da lataria do veículo dele ser arranhada com meu contato. Eu passo, seguro e confiante, acelero a rotação porque vem uma reta plana. Não há semáforos, mas ainda assim o trânsito de veículos automotores segue em ritmo lento. Atrás de mim uma moto se aproxima. Não há como sair da frente, não há por onde escapar. Eu acelero mais ainda a rotação, pois vejo um vão livre por onde a passagem flui. Conto com minha destreza em costurar para compreender quais os lugares onde posso passar sem maiores problemas. Retrovisores pareados, fluindo a um ritmo lento me trazem tensões, mas ainda consigo passar apertado entre automóveis. A moto fica para trás. Vejo um longo corredor aberto, livre de obstáculos. Foco no ponto de fuga que surge na linha do horizonte, olhar concentrado para a utopia. O vento bate forte na minha cara, secam meus olhos ao mesmo tempo que deixa escapar uma lágrima involuntária. Eu entrefecho as pálpebras para melhorar a visão. Um caminhão ocupa mais espaço de pista que o automóvel a seu lado. Aproveito a brecha deixada por um automóvel, olho para trás, rápido e discreto, e consigo quebrar uma diagonal para mudar de corredor. O carro se assustou e hesitou em frear, mas eu já havia passado. O coração batia forte, a adrenalina estava alta. A respiração começa a falhar pelo esforço, pelo calor e pela poluição. Opto por dar respiradas mais longas, puxando pelo nariz e soltando pela boca. Tarefa difícil de se fazer quando se já está cansado e ofegante. Mas ainda tem muito trajeto pela frente. Neste corredor os automóveis são mais impacientes, mudam de faixa como se fosse adiantar alguma coisa. Não consigo manter velocidade constante. Freio, acelero, freio, acelero, acelero mais, dou a volta. Alguns carros não conseguem mudar de faixa por completo e a parte traseira come parte do corredor. Eu desvio e sigo com rotação intensa. A faixa branca tracejada atropela tampas de bueiro. Me desagrada muito o relevo dos bueiros no meio da pista, instabiliza a bicicleta, fico inseguro. Quero retornar para o outro corredor, mas não encontro espaços para fazer a manobra. Além do que, várias motos já fizeram um grande corredor na pista de lá, com suas buzinas irritantes e escapamentos barulhentos. Decido seguir por cima dos bueiros, pelo menos eles estão com tampa. Mais adiante, vejo um semáforo fechado. Começo a observar se existe algum sinal de que ele irá abrir e eu não precise frear. Estou atento à qualquer mudança de padrão da ordem contextual vigente. Na rua transversal os carros começam a ir mais devagar, o semáforo de pedestres começa a piscar no vermelho, escuto alguns câmbios se encaixando com uma embreagem mal pisada. Escuto controles de embreagem desnecessários em uma reta plana. Aos sinais eu acelero mais ainda a rotação. Confiro se não há pedestres retardatários e me concentro nos próximos movimentos. Quero cruzar todas as pistas, passando pela frente de todos os automóveis que ainda não arrancaram, e acessar a rua transversal. Minha velocidade me permite, minha disposição me encoraja. Eu me arrisco e vou, livre e confiante. Acesso à rua, e um novo corredor se inicia. As pequenas vitórias duram pouco tempo para serem contadas em seus mínimos detalhes.
***
Era fim de tarde, início da noite. Quase naquele momento que gostamos chamar de “luscofusca“. Nem tão claro a ponto de conseguirmos enxergar tudo, nem tão escuro a ponto da luz artificial fazer alguma diferença na luminosidade. Eu andava tranquilo por um viaduto, levemente inclinado para cima. Várias pessoas passavam por mim, todas desconhecidas. Ninguém me cumprimentou, não cumprimentei ninguém. Mal nos olhávamos nos olhos. Ninguém me observou, eu não observei ninguém. Eu olhava para o que seriam meus próximos passos. Olhava os automóveis trafegando em câmera lenta, ora engarrafados. Via os edifícios que se aproximavam a cada passo. Olhava toda a matéria morta que se encontrava ao meu redor. Seguia meus passos sem olhar as pessoas. A gente fica duro quando caminha pela cidade grande…

La Idea, 2023 – Olympus Pen-EE, Double-X 200 BW

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[xilogravura] Andina

O ano era 2014. Havia pouco tempo que eu havia ingressado, a partir do processo de transferência, ao curso de Artes Visuais da UFMG. Eu andava bem frenético no que referia à produção artística. Em 2012 havíamos vivenciado um cotidiano fronteiriço em Ciudad Juárez, México, e minha energia produtiva andava bem aquecida e estimulada por esta riquíssima experiência.
Eu conheci a linoleogravura enquanto estudante de Artes Visuales, no Taller de Grabado que eu frequentava em Cd. Juárez. Foi amor à primeira vista. No México, o acesso a materiais de gravura, matrizes, ferramentas e referências é muito mais amplo que aqui no Brasil. Inclusive, as ferramentas que comprei lá, e que eram as mais baratas, são as mesmas que uso até hoje.
São técnicas beeeem populares, pois existiram (e ainda existem) várias gráficas populares na região. No Brasil, a gráfica ficou restrita por muito tempo apenas à família real, e as ideias não circulavam tanto quanto na parte do continente colonizada pelos hispânicos (Mas essa história do desenvolvimento e popularização da gráfica talvez seja uma pesquisa para outra postagem).
Na minha tentativa de desenvolver mais a técnica, passava boa parte do meu tempo pesquisando artistas, processos, técnicas e temáticas. Que eu incorporei a cultura da região do México na minha produção não é novidade para ninguém. Basta ver meu portfolio que essa temática fica escancarada. Mas algo que eu incorporei foi esse amor ao processo gráfico artesanal, de pensar, refletir, produzir, e trazer ao público minha produção de maneira acessível.
Por isso me recuso a vender gravuras por valores irreais às condições econômicas de pessoas comuns, ainda que algumas tenham valor mais elevado, mas isso se deve, muito, aos materiais que aqui nos custam muito caros. Não gosto de fechar e limitar edições de gravuras cujas matrizes ainda podem ser reproduzidas, e sempre tento levar meu trabalho para outros suportes, como lambe-lambe e camisetas. Assim, garanto uma forma de acessibilidade visual que foge à lógica de galerias, por exemplo.


Os esboços em meus caderninhos são algo que eu curto fazer enquanto processo produtivo. Acho que é a forma mais sincera de se começar algo. Me lembro bem que eu treinava desenhos a partir de fotografias de pessoas, e eu curtia muito trabalhar os tecidos que apareciam. Gostava de observar e de representá-los de alguma maneira gráfica.

Não sei exatamente como essa fotografia surgiu na minha vida. Mas várias coisas me chamam atenção nela. A quantidade de pano, com muitas tonalidades e texturas; o olhar da mulher; o olhar da criança; a paisagem. É uma fotografia interessante aos meus olhos em vários aspectos. Até porque, nesta época, os temas que envolviam maternidade, mulheres e crianças em processos históricos (sobretudo de lutas) era algo que me chamava muita atenção.
Não pude perder a chance de praticar desenhos e logo abri meu bloquinho A5 para esboçar alguma coisa. As tramas do pano foram algo que me trouxeram a ideia de transformar a imagem em uma xilogravura. Várias linhas paralelas, de diferentes espaçamentos e espessuras, ditavam o ritmo. Essa textura parecia maravilhosa para um gravador iniciante.
O processo foi relativamente simples. Digitalizei a página do bloquinho, ampliei para um formato A3, imprimi. Na folha impressa, trabalhei com marcadores a base de álcool na cor preta, para criar os preenchimentos, volumes, vazios. Criei de forma manual uma imagem com linhas e formais mais rígidas, já pensando em uma estética própria da xilogravura. Após todas as marcações em preto estarem prontas, fiz uma cópia em impressora de toner, e fiz uma transferência pra placa de compensado de pau-marfim com thinner e prensa.
Daí, foi só começar o processo de gravação. Utilizei, majoritariamente, goiva faca para todas as bordas, e goiva em V muuuuito afiada pra fazer os detalhezinhos da textura do pano.
Foram algumas semanas gravando, mas acho que valeu a pena.

Após um longo processo de gravação e de testes, acho que fiquei satisfeito com a matriz que eu havia gravado. Precisava de um papel que estivesse à altura, que fosse tão delicado quanto à suavidade e serenidade da imagem. Optei por um papel de arroz tão fino, que praticamente não aparecia. Dava a impressão de que a impressão ríspida flutuava no ar. A impressão foi feita completamente com colher de pau, sem a utilização de prensa, com todo cuidado para que o papel não rasgasse por conta de sua espessura. Processo delicado, trabalhoso, mas que me trazia muita satisfação.
Logo abaixo seguem os resultados.

A única questão sobre esta gravura, é que eu acabei fazendo poucas cópias dela. Em 2015 ou 2016, não me lembro, houve uma infestação de ratos lá em casa. Eu tinha uma gaveta onde guardava todas as matrizes, bem como algumas impressões e revistas. Quando abri a gaveta, havia fezes e urina de ratos para tudo quanto é lado, tudo estava roído e/ou descascado. Eu preferi não arriscar. Coloquei luvas, juntei tudo em um saco de lixo e descartei. Perdi muitas coisas nesse processo, mas o que foi feito, pelo menos, tem fotos…